quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

UM DOCE DE POESIA

Tecendo a manhã

 
 
Um galo sozinho não tece uma manhã: 
ele precisará sempre de outros galos.  
De um que apanhe esse grito que ele 
e o lance a outro; de um outro galo 
que apanhe o grito de um galo antes 
e o lance a outro; e de outros galos 
que com muitos outros galos se cruzem 
os fios de sol de seus gritos de galo, 
para que a manhã, desde uma teia tênue, 
se vá tecendo, entre todos os galos. 
   
E se encorpando em tela, entre todos, 
se erguendo tenda, onde entrem todos, 
se entretendendo para todos, no toldo 
(a manhã) que plana livre de armação.  
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo 
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

( João Cabral de Melo Neto ) 

 
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O homem é o animal mais vestido e calçado.
Primeiro, a pano e feltro se isola do ar abraço.
Depois, a pedra e cal, de paredes trajado, se defende do abismo horizontal do espaço.
Para evitar a terra, calça nos pés sapatos nos sapatos, tapetes, e nos tapetes, soalhos. 
Calça as ruas; e como não pode todo o mato, para andar nele estende passadeira de asfalto.

(João Cabral de Melo Neto)




 O Vento que passa



Vento que passas
 nos pinhais
quantas desgraças
lembram teus ais.
Quanta tristeza,
sem o perdão
de chorar, pesa
no coração.
Ó vento vago
das solidões
traze um afago aos corações.
À dor que ignoras
prestas aos teus ais,
vento que choras nos pinhais.
(Fernando Pessoa)








Um deus também é vento/ só se vê nos seus efeitos/árvore em pânico bandeiras águas trêmulas navios a zarpar.
Me ensina a sofrer sem ser visto/ a gozar em silêncio o meu próprio passar/ nunca duas vezes no mesmo lugar.
A este deus que levanta poeira dos caminhos os levando a voar consagro este suspiro/ nele cresça até virar vendaval.

( Paulo Leminski )



TRADUZIR-SE





UMA PARTE DE MIM É TODO MUNDO; OUTRA PARTE É NINGUÉM: Fundo sem fundo. / Uma parte de mim é multidão; outra parte estranheza e solidão. / Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira. / Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta. / Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente.

( Ferreira Gullar )


Mulher ao Espelho



Hoje, que seja esta ou aquela, pouco me importa. Quero apenas parecer bela, pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena, já fui Margarida e Beatriz. Já fui Maria e Madalena. Só não pude ser como quis.
Que mal faz, esta cor fingida do meu cabelo, e do meu rosto, se tudo é tinta: o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto? 

( Cecília Meireles )


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